Ao final da sessão de “Las Herederas”, que abriu a competição internacional do 46º Festival de Cinema de Gramado, na noite de sábado (18), houve fila para cumprimentar a equipe do longa paraguaio. O público emocionado abraçava as três atrizes (Ana Brun, Margarita Irun e Ana Ivanova), agradecendo a entrega na interpretação do drama que provoca ao abordar a relação homossexual entre mulheres na terceira idade.
O diretor, Marcelo Martinessi era saudado por ter. ao mesmo tempo, coragem e sensibilidade para pautar o tema tabu com delicadeza, e o produtor do filme, Sebastián Peña Escobar, recebia elogios por um duplo logro: coordenar uma coprodução entre seis países e emplacar o filme em salas de todo o continente – no Brasil, “Las Herederas” estreia em cinemas no dia 30 de agosto.
O filme chegou a Gramado depois de se destacar no Festival de Berlim onde foi premiado em três categorias e ainda venceu outros seis festivais ao redor do mundo.
Todo esse êxito não é resultado de anos de experiência como seria de se esperar. Pelo contrário, “Las Herederas” é o primeiro longa-metragem tanto de Marcelo Martinessi como de Sebastián Peña Escobar. “Durante as gravações, nos apoiamos muito. Dizíamos, já que é nossa primeira vez, vamos fazer isso juntos”, confessa Escobar.
A dupla precisou se desdobrar para além dos papeis que lhes correspondiam para executar o projeto. Isso porque com a participação de 40% do Brasil na produção, confirmada pela produtora Julia Murat, era preciso fazer com que o Senado do Paraguai aprovasse uma lei de cinema que autorizasse a inclusão do país no rol de signatários do programa Ibermedia, o principal incentivador de coproduções entre América Latina e Península Ibérica e que apoiou a realização do longa. “Eles iam de gabinete em gabinete pedir o apoio dos senadores e todas as noites eu e Sebastián falávamos por telefone para ele me atualizar do placar da votação”, recorda Julia.
Tem mais: durante a coletiva de imprensa e debate com o público, a protagonista da história, Ana Brun surpreendeu os presentes ao revelar que é atriz amadora. Sua personagem, a decadente Chela, precisa se reinventar quando a companheira de 30 anos de vida é presa por uma dívida não paga exatamente no momento em que está vendendo o que ainda lhe resta de herança para sobreviver.
Ana Brun ou Patricia Abente?
Sem nenhuma experiência em cinema (nos anos 80, ela declamou poesias no documentário “A guerra do Brasil”, de Sylvio Back, “mas nunca pude assistir o resultado final, pois os sistemas do Brasil e do Paraguai eram diferentes e as fitas VHS que recebi não rodavam no meu aparelho), Brun interpreta cenas complexas até para um ator experimentado, entre elas uma em que aparece se masturbando.
Apesar do evidente nível de exigência do papel, Ana relativiza: “A parte da solidão, da tristeza e do confinamento de Chela não me custou muito representar, pois eu mesma vivi isso. A sexualidade, creio que é um tema lateral no filme, onde o principal é a forma como ela sai dessa crise, depois de muita dor”, avalia.
Não é assim: o desejo sexual de Chela aparece ao longo de quase toda a obra, mesmo que sejam realmente poucas as cenas explícitas. Quem o desperta é, por vezes, a velha companheira Chiquita (Margarita Irun) ou a voluptuosa Angie (Ana Ivanova), que, entretanto provocam sentimentos múltiplos tanto na protagonista como no espectador – já que ambas oscilam entre o apoio à Chela e atitudes que a confundem.
Ana Brun é quase ela mesma um personagem também, já que o nome pelo qual a atriz amadora é realmente conhecida no Paraguai é Patricia Abente – assim a chamam seus amigos, família e clientes do escritório de direito de propriedade intelectual que ela mantém em Assunção. “Eu pedi para ser identificada assim pois sabia que o assunto seria polêmico e temia perder clientes”, revela. No entanto, o efeito do filme foi inverso, Ana – ou Patricia – atende hoje mais gente no escritório. Isso porque a história das duas senhoras comoveu mesmo uma sociedade que os realizadores do filme consideram conservadora. “Muita gente percebeu que seus preconceitos não tinha sentido, e mudou a posição. Outras pessoas se mantiveram preconceituosas, mas foram obrigadas a tornar isso público de alguma maneira, o que é bom também”, comemora.
A vida real no presídio
Outra curiosidade do filme é que as cenas de Chiquita presa realmente se passam em um presídio paraguaio, com as detentas fazendo figuração e até pequenas participações. “Entrávamos às seis da manhã e saíamos às seis da tarde. Elas atuavam, delas também brotavam as falas que iam dizendo”, revela Margarita Irun.
A história dessas mulheres também serviu de inspiração ao elenco e ao diretor. “Para mim, era muito difícil de desligar da realidade delas depois de sair de lá”, revela a atriz.
Ela se envolveu pessoalmente com algumas das mulheres e hoje, os filhos de algumas delas freqüentam aulas de interpretação em uma escola de teatro que Margarita mantém em Assunção.
Depois de montado, o filme foi exibido no presídio, e a reação das mulheres surpreendeu mais uma vez a equipe. As detentas se impressionaram com a força da personagem Chela, e pediam à sua intérprete dicas de como a protagonista conseguiu reagir diante da calamidade.
(Texto: Naira Hofmeister / Foto: Cleiton Thiele/Pressphoto)
Ministério da Cultura, Secretaria de Estado da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer e Snowland apresentam o 46º Festival de Cinema de Gramado. Lei de Incentivo à Cultura. Patrocínio: Stella Artois e Casa Aveiro By Dolores. Apoio especial: Gramado Parks. Apoio: Stemac Grupos Geradores, Lugano, Cristais de Gramado, Viviela London, G2 Net Sul e ENIT – Agência Nacional de Turismo da Itália. Apoio institucional: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Fundacine, ACCIRS, IECINE, APTC/ABD RS, SIAV e Museu do Festival de Cinema de Gramado. Agência Oficial: Vento Sul Turismo. Transporte Oficial: Kia. Agente Cultural: AM Produções. Promoção: Prefeitura de Gramado. Financiamento Pró-Cultura RS, Secretaria de Estado da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer, Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Realização: Gramadotur, Ministério da Cultura, Governo Federal.